Livros

Tudo são histórias de amor

Quem me conhece sabe que ao lado da minha costela existencialista há outra petrarquista que compensa a falta de jeito para a poesia lírica com uma enorme vontade de ler ou escrever sobre o amor. Ia acrescentar “percebê-lo”, mas se calhar nem é isso, pois sempre achei que o amor não é para perceber e é isso que o torna tão interessante. Há duas semanas, li quase de um fôlego os 12 contos que compõem o novo livro da Dulce Maria Cardoso, Tudo São Histórias de Amor, e descobri com prazer que qualquer tom romântico que se pudesse adivinhar pelo título é esmagado por uma visão muito mais cruel e problemática do tema. Partilho por isso o texto que escrevi há uma semana na Time Out, com cinco estrelinhas à cabeça:

Cabeça Coração

Um cão leva animais mortos para a dona que vive isolada no último andar de um prédio e tem ossos velhos que já não lhe permitem sair, e isso é amor. Uma mãe tem de escolher qual dos dois filhos salva de morrer atropelado, e isso é amor. Um rapaz ganha uma mulher ao jogo, com um baralho de cartas, e isso é amor. Não é clássico, não é cor-de-rosa, não é sequer conjugal, mas é o amor que Dulce Maria Cardoso retrata no seu novo livro de contos, um amor violento, imperfeito e que dói, tema transversal do livro que se junta a outros como a maldade, a diferença, a solidão e a responsabilidade.

Tudo São Histórias de Amor segue-se ao grande romance O Retorno e reúne 12 narrativas que, quase sem excepção, conseguem introduzir um grau maior ou menor de perturbação no leitor, seja no óptimo conto de entrada, “Este azul que nos cerca”, onde a tragédia é iminente desde o momento em que uma mulher chega a uma ilha onde oito faroleiros vivem isolados, seja em “A mosca e o copo de vinho rosé”, onde um simples insecto e um final aberto conseguem deixar-nos a pensar sobre a – cada vez maior? – indiferença. Há contos que partem de casos reais, como o que lembra as vítimas da queda da ponte Hintze Ribeiro (“Não esquecerás”) ou o que parte da morte de Joana, aos oito anos, (“Desaparecida, ou a Justiça”), e há experiências formais como o conto que é escrito como um ataque de pânico. Os cenários são mais rurais do que urbanos, como se a própria natureza conspirasse para um isolamento de onde emergem os grandes temas humanos e o tal amor em todas as suas formas. Diz-se algures que “quase todas as vidas dariam maus livros por causa das verdades absurdas de que se fazem”, mas estas deram precisamente o contrário.

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3 thoughts on “Tudo são histórias de amor

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